O cenário dos livros biográficos

Reportagem sobre a biblioteca
dezembro 8, 2020
Raul Marques lança biografia do locutor Asa Branca
dezembro 10, 2021

PESQUISA:

O CENÁRIO DOS LIVROS BIOGRÁFICOS: DIFERENÇAS E SIMILARIDADES NA CONSTRUÇÃO DO TEXTO

 

 

Raul Marques*

*Escritor, jornalista e autor de 18 livros, entre eles as biografias do locutor Asa Branca e do bailarino Thiago Soares  

 

 

 

“A biografia pode ser um elemento privilegiado

na reconstituição de uma época, com seus sonhos e angústias”

François Dosse

historiador e sociólogo

 

 

 

INTRODUÇÃO AO GÊNERO BIOGRÁFICO

 

A biografia é um gênero textual que apresenta ao leitor uma longa e muitas vezes complexa narrativa sobre uma pessoa. Os fatos que se caracterizam como marcos temporais, as passagens expressivas e as experiências com potencial de chamar a atenção da sociedade, tanto na seara pessoal quanto na área de atuação profissional, são itens necessários para a construção de um perfil biográfico, que tem caráter híbrido e multiplicidade de técnicas usadas na elaboração, que é feita, na maioria das oportunidades, por historiadores, escritores e jornalistas.

A partir da coleta de depoimentos, da consulta de informações oficiais, da busca por imagens interligadas à proposta e de farta pesquisa de campo, o escritor reúne conteúdo suficiente para elaborar uma obra com valor documental, com representativa amostra sobre o outro, pois sugere-se impossível, independentemente do tempo e do esforço empregados na empreitada, a elaboração de um material definitivo, capaz de apresentar uma existência inteira sem lacunas.

Não se pode ignorar que a biografia pode conter traços da arte ficcional, em razão da necessidade de interpretar e de reconstruir os acontecimentos.

No livro “O desafio biográfico – escrever uma vida” (2009), o historiador e sociólogo francês François Dosse sustenta: “Discurso moral de aprendizado das virtudes, a biografia se tornou, com o passar do tempo, um discurso de autenticidade, remetendo à intenção de verdade por parte do biógrafo. Entretanto, permaneceu a tensão entre essa ânsia de verdade e uma narração que deve passar pela ficção e que situa a biografia num ponto médio entre ficção e realidade histórica.” Ele acredita que um dos maiores méritos do texto biográfico é a capacidade de gerar empatia com quem lê. Para atingir essa característica, salienta Dosse, não se pode ignorar os dons estilísticos do verdadeiro escritor. “O gênero exige tanta imaginação quanto um romance.”

Década após década, a biografia passou por diversas fases e transformações no estilo, construção e desenvolvimento de formatos antes de se estabelecer e se popularizar no mercado editorial – sem, é claro, perder a essência, que é apresentar um amplo relato, construído normalmente em ordem cronológica, sobre uma pessoa reconhecida pela contribuição em determinado segmento, popular em nicho ou dona de extraordinário feito que merece ser publicado. No mundo contemporâneo, o gênero ocupa lugar de destaque entre os leitores ávidos em saber mais detalhes sobre o outro, com importante vendagem de exemplares.

O presente artigo tem o objetivo de analisar as características de três estilos biográficos comuns: a biografia, a autobiografia e as memórias. Eles são construídos com técnicas diferentes e se relacionam, de maneira discreta ou mais intensa, com a literatura, o jornalismo e a historiografia. Antes de ingressar nesse rico universo, é necessário entender um pouco mais a origem e o que motiva essa escrita.

 

POR QUE ESCREVER UMA BIOGRAFIA?

 

Quais existências merecem ser retratadas em uma biografia? O professor Benito Bisso Schmidt explica, no artigo “Por que escrevemos biografias”, publicado no portal Café História – história feita com cliques, em 2019, quais questões basilares motivam essa produção, muito além dos interesses editorais, comerciais e econômicos que desperta uma personagem com grande alcance de público.

“Para alguns, é importante escrever narrativas biográficas a fim de se compreender questões mais gerais, pois os(as) biografados(as) seriam representativos(as) de grupos e processos mais amplos, para além de suas vidas individuais. Para outros(as), trata-se justamente do contrário: o valor da escrita de biografias residiria na singularidade dos indivíduos enfocados, cujas vidas seriam capazes de tensionar e até mesmo contradizer explicações gerais.”

Segundo Schmidt, “outro motivo interessante é aquele que postula que, através das biografias, seria possível identificar as margens de liberdade dos sujeitos individuais, mesmo diante de sistemas opressivos e normativos poderosos.” Por fim, em sua opinião, a escrita de uma biografia se justifica para evitar o esquecimento, com o avançar do tempo, de determinada figura. Com a publicação da biografia, “as ações consideradas notáveis de determinados personagens permanecem na memória coletiva, garantindo a eles(as) uma vida histórica para além da vida biológica”, finaliza.

Para François Dosse, “às vezes, a biografia é usada como pretexto para abordar um tema histórico ou se divide em duas partes: uma, consagrada ao relato factual, a outra, ao exame de questões controvertidas”. Em outras situações, com viés comercial, são escolhidas para serem biografados personagens que são seguidas por quantidade importante de pessoas nas redes sociais ou têm destaque na mídia, talvez por um breve período, tão fugaz que está fadado ao esquecimento na próxima estação, mas que, aos olhos do mercado, poderá vender uma representativa quantidade de livros a um público específico e simpatizante. Também existem casos de biografias que jogam luz na trajetória de pessoas (até então) desconhecidas do grande público, mas que, à sombra da visão geral, têm uma história fantástica ou fizeram algo grandioso que merece ser contado a todos. O mercado editorial oferece um amplo cardápio de possibilidades para agradar a todo tipo de leitor.

 

SOBRE O SURGIMENTO DA BIOGRAFIA

 

A história do gênero biográfico está ligada, mesmo sem receber um nome oficial ou nomenclatura adequada, à historiografia do século 19. É o que afirma a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz no artigo “Biografia como gênero e problema”, publicado no primeiro semestre de 2013, na Revista História Social. “O modelo dessa forma de fazer história era aquele que consagrava ao profissional a capacidade de enaltecer e engrandecer aquele que seria biografado. Histórias de reis, príncipes, senadores e governantes eram as mais recomendadas, para todo aquele que quisesse dignificar seu personagem, mas também sua pátria e nacionalidade.”

Conforme Lilia, no Brasil o Instituto Histórico e Geográfico, que nasceu com a proposta de enaltecer o Império, praticou o gênero e sempre buscou a exaltação do biografado. “Ao lado das trajetórias de reis, rainhas, governadores gerais, literatos de fama, realizavam-se, no dia a dia da instituição, relatos biográficos sobre os sócios locais. Não por coincidência, media-se a importância do associado a partir da pessoa que realizava sua biografia. Isto é, quando um dos sócios falecia, dizia a regra local que era preciso realizar uma peça biográfica que seria impressa nas páginas da revista do estabelecimento.”

De acordo com François Dosse, a palavra biografia só muito tarde apareceu em francês e em outras línguas europeias (fim do século 18), não significando, porém, que a prática biográfica não fosse atestada há muito tempo. “Sua primeira ocorrência em idioma francês alude a um projeto de Bayle. Ele pretendia escrever uma obra sobre os erros cometidos pelos biógrafos ao falar da morte e nascimento dos sábios. O termo surge na edição de 1721 do Dictionnaire de Trévoux.”

O gênero biográfico é muito mais antigo do que se imagina. As suas sementes estão presentes nas crônicas sobre os assírios, na Mesopotâmia; nos relatos sobre faraós, sacerdotes e figuras ilustres do Egito; e em textos bíblicos e na literatura islâmica. Já no Ocidente, “Agricola” é considerada a percursora do gênero. Foi elaborada pelo historiador, orador e político romano Cornelius Tácito, em torno do ano 100 da nossa era. Tácito narrou as conquistas profissionais de seu sogro, Cneu Júlio Agrícola, um respeitado general.

No Brasil, o termo biografia apareceu somente em meados do século 19.  “Um estadista do Império”, de Joaquim Nabuco, foi lançado a partir de 1897, em três volumes, sobre o seu pai, José Thomaz Nabuco de Araújo, magistrado, senador e político influente da época. Outro marco foi o livro Dom João VI, de Oliveira Lima, lançado em 1908. A partir da década de 1930, a biografia, até então com forte foco historiográfico, ganhou na Europa uma corrente conhecida como biografia moderna, com texto romanceado e produzido por escritores e artistas.

 

 CARACTERÍSTICAS DA BIOGRAFIA TRADICIONAL

 

 O gênero biográfico é complexo e permite ao autor utilizar diversas técnicas de escrita para contar uma boa história. Segundo o historiador François Dassi, “a regra é nunca descentralizar demais o herói da biografia.” Sim, a personagem central deve ser uma figura onipresente, com presença marcante ou, no máximo, em segundo plano. Afinal, sua trajetória está sendo reconstruída e ninguém mais, nesse momento, merece receber tanto destaque quanto o próprio biografado. Não é prudente que apareça só na introdução e na conclusão. Deve ser recorrente.

A forma mais comum de texto biográfico, que pode ser chamada de biografia tradicional, é produzida por uma pessoa que não seja a personagem destacada na obra. O biógrafo não participa dos episódios que menciona no livro. Cabe a ele a função de elaborar a narração, a partir do seu ponto de vista. Tem o compromisso de apresentar a verdade ou o que existe de mais próximo a ela, sem poupar o biografado, mesmo que nutra admiração por ele, de questão que possa ser incômoda, inconveniente, constrangedora ou que tenha sido escondida com empenho.

O distanciamento crítico, a vontade de contribuir com a sociedade para o entendimento da história do biografado e o respeito pela ética ajudam o biógrafo a definir o que é importante e não pode ser ignorado no relato, sem colocar em risco a credibilidade, a qualidade, a privacidade e a honra da personagem, com a divulgação, por exemplo, de intimidade fora do contexto. O texto é narrado em terceira pessoa do singular. Em suma: eu conto a sua história.

Há outras características recorrentes que nos ajudam a entender melhor quais caminhos guiam o gênero. Segundo a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, “processos biográficos não são como avenidas pavimentadas e de sentido único, e nem tampouco seguem uma linearidade progressiva – nos termos de uma sucessão mecânica entre causas e efeitos.” De maneira recorrente, o texto é elaborado pelas mãos do historiador, do jornalista, do escritor e do artista.

Para organizar um amplo perfil, é preciso entrevistar pessoas (qualitativa e quantitativamente) que ofereçam depoimentos que contribuam, com experiências e provas, para a construção do livro e a ampliação da visão. Também é praxe pesquisar documentos disponíveis em órgãos públicos e entidades particulares, ler publicações em jornais, revistas e confiáveis portais de notícias reconhecidos pelo compromisso com a verdade. O conteúdo tanto poderá ser citado de forma literal quanto servir como ponto de partida.

Ao biógrafo cabe a nada simples missão de reunir um robusto material para embasar o trabalho, delimitar os eventos marcantes e selecionar o que é fundamental para a compreensão integral e clara. O que aparecer além disso fica na berlinda e corre o risco de ser ignorado. “É preciso invadir a personalidade alheia, habitar nela e ser por ela habitado”, afirma o historiador François Dassi, que acrescenta: “Cumpre cortar na carne viva, fazer escolhas drásticas e dolorosas, aceitar as falhas, as lacunas na documentação, e preenchê-las com a dedução lógica ou a imaginação; é o espaço sonhado da invenção, da ficção. É o instante da escrita.”

A biografia é elaborada em ordem cronológica e destaca os acontecimentos com marcadores temporais, entre outros, como infância, adolescência, casamento, prêmio, separação. Por se tratar de um texto com diferentes tempos e espaços, é comum o uso de adjuntos adverbiais, substantivos, verbos de ação e pronomes, sem promover a repetição desnecessária e prejudicial. Adjetivos não são bem-vindos. O tempo verbal desejável é o pretérito perfeito do indicativo.

O gênero permite uma flexibilidade linguística. A variação no estilo ocorre a partir da temática em que está inserido o biografado (não faz sentido uma personagem sisuda, com atuação no mercado financeiro, ter a trajetória contada com humor ou prosa poética) e do perfil do biógrafo. Até pela influência do jornalismo, o texto é objetivo, direto e até informal, desde que com respeito às normas gramaticais. O discurso é narrativo e pode conter passagens descritivas, explicativas e argumentativas.

As editoras optam por usar como título do livro o nome do biografado, em destaque. O título pode ser acompanhado por uma frase que sintetize o pensamento ou represente o cerne da trajetória. Os primeiros capítulos explicam a origem do biografado, com data e local de nascimento, informações sobre a infância e detalhes da adolescência, com as referências familiares e apresentação de acontecimentos que podem ter contribuído para a formação da personalidade.

No final, o biógrafo oferece a conclusão, enfocando os últimos momentos da existência do biografado ou o fim do recorte temporal escolhido. O autor pode elaborar um posfácio com considerações finais a respeito do que o leitor acabou de ler ou uma explicação, caso julgue necessário. Referências bibliográficas, índice onomástico e créditos das imagens cabem no encerramento.

 

 EXEMPLOS DE BIOGRAFIAS

 

“Jorge Amado, uma biografia”

Joselia Aguiar

 

“Apenas um rapaz latino-americano”

Jotabê Medeiros

 

“Silvio Santos, a biografia”

Márcia Batista e Anna Medeiros

 

“Suzane: assassina e manipuladora”

Ullisses Campbell

 

“Lula, volume 1: Biografia”

Fernando Morais

 

“O anjo pornográfico”

Ruy Castro

 

“Os caminhos de Mandela”

Richard Stengel

 

“Asa Branca – a biografia”

Raul Marques

 

“Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo”

Mário Magalhães

 

 

 AUTOBIOGRAFIA E SUAS IMPLICAÇÕES

 

A autobiografia é outra forma comum de contar a história de uma pessoa. A principal característica: a pessoa narra a própria vida, ocupando, ao mesmo tempo, as figuras de biógrafo e de biografado. Assim, a narrativa é construída na primeira pessoa do singular e não se encerra com a morte, mas em ocasião representativa da existência de quem escreve. O professor e ensaísta francês Philippe Lejeune afirma que o texto autobiográfico pode ser entendido como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”.

A autobiografia segue parâmetros estruturais similares aos da biografia, com texto objetivo, apresentação dos acontecimentos em ordem cronológica, uso de marcadores temporais, compromisso em reconstruir a verdade e riqueza de detalhes, com a pesquisa em arquivos das datas do que será descrito, de acontecimentos que não poderão ser ignorados e do nome correto das pessoas com as quais compartilhou eventos relevantes. Como também se vale de material oriundo da memória, não há a necessidade de buscar depoimentos de quem pode acrescentar informações.

No artigo “Autobiografias e livros de memória”, publicado na Revista E, em 2019, o poeta, historiador, diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras Alberto da Costa e Silva, afirma que a “autobiografia é um relato que, baseando-se nos documentos, alguém escreve sobre si. Escreve sobre si próprio a olhar-se como se fora um outro, de quem narra a história para justificar-se ou explicar-se. Faz o que muitos políticos, e alguns deles famosos, como De Gaulle e Churchill, sempre fizeram. Escrevem livros em que contam a sua própria vida, antes que outros o façam”.

A autobiografia também pode ser elaborada a partir de lembranças guardadas em lugares pouco acessados, de extensa ressignificação e da interpretação do que se passou. A releitura abre espaço, sem intenção aparente, para a entrada da ficção. “A memória não é linear e um dos principais problemas que muitas autobiografias encontram é como dar um tempo e espaço linear a algo que naturalmente não o é”, afirma Kaline Cavalheiro da Silva, no artigo “Autobiografia x escrita de si = autoescrita”, publicado em 2018 na Revista Letras Raras.

Experiências, vivências e pontos fortes da trajetória, assim como datas, locais, questão pessoal e percurso profissional, são peças fundamentais na montagem desse grande quebra-cabeças. O autor tem autonomia de escolher a maneira que se sente mais confortável para escrever e que facilitará a compreensão do que pretende dizer. Tem variados formatos, como diários, memórias, poema. Independentemente da escolha, a autobiografia tem valor reconhecido à medida em que o personagem compartilha com a comunidade suas impressões e visão de mundo, que colaboram para o entendimento de sua obra com outra perspectiva.

Como lembrou Alberto da Costa e Silva: “uma autobiografia não é uma vida. Uma autobiografia é uma reinvenção do vivido”.

 

 EXEMPLOS DE AUTOBIOGRAFIAS

 

“A Origem dos Meus Sonhos”

Barack Obama

 

“O Diário de Anne Frank”

Anne Frank

 

“Eu sou Malala”

Malala Yousafzai

 

“Rita Lee: Uma Autobiografia”

Rita Lee

 

“Diário de um detento”

Jocenir

 

“Minha história”

Michelle Obama

 

“Vira-lata de raça”

Ney Matogrosso

 

“De porta em porta”

Luciano Huck

 

A FIGURA DO GHOSTWRITER

 

Nem toda personagem que pretende esmiuçar a própria história em uma autobiografia domina as técnicas de escrita. Ou é tão ocupada que não tem tempo ou falta paciência para se dedicar a um projeto com essa envergadura. Desse modo, surge a oportunidade de contar com o ghostwriter, o popular “escritor fantasma”. Trata-se de um profissional, oriundo de setores como jornalismo e mercado editorial, contratado pelo autor ou pela editora para organizar o texto, entrevistar o biografado e escrever a narrativa de modo palatável. Famosos, que são reconhecidos em diversas áreas do saber, publicam autobiografias sem ter escrito nenhuma palavra.

O ghostwriter, que também é solicitado para desenvolver ficção, é pago, entrega o serviço e desaparece – daí a alcunha de fantasma. A identidade permanece invisível, ou seja, não recebe crédito em nenhum lugar. Por questões mercadológicas, as editoras trabalham a imagem do biografado para chamar a atenção do mercado e vender livros, não do biógrafo – existem, é claro, honrosas exceções.

O leitor mais atento percebe que, em situações específicas, o ghostwriter é um fantasma que costuma aparecer, com sutileza, nos créditos oficiais, em funções “disfarçadas”, como organização ou pesquisa. Em outros casos, o biografado faz questão de agradecer a participação do “amigo” que o ajudou na produção. A função do ghostwriter não é novidade do mercado editorial. A sua presença é bastante antiga e até controversa. Quem é contratado para executar um serviço nesses moldes sabe das regras. Mesmo se o livro se tornar um bestseller, nada mudará com relação aos créditos e não receberá nada além do que foi acordado.

 

LIVRO DE MEMÓRIAS: UM RELATO MAIS EXPERIMENTAL

 

O livro de memórias oferece mais liberdade a quem escreve do que a autobiografia. A narrativa é construída na primeira pessoa do singular, já que o autor é o agente principal. O formato pode ser experimental, sem a necessidade de seguir ordem cronológica e os cânones da objetividade. É uma interpretação livre dos acontecimentos, com as memórias como fonte primária na elaboração da história.

Alberto da Costa e Silva ressalta a característica principal desse tipo de relato: “No livro de memórias, o autor só se interessa por aquilo que lhe volta naturalmente à lembrança. Ele não tem a ambição de reconstruir a vida da personagem que é ele próprio. A sua ambição é de reexperimentar liricamente o que lhe coube ser no passado e repartir com os outros paisagens que viu e dias que viveu.”

Para Silva, o livro de memórias é sempre uma retrovisão emocionada. “Alguém olha para trás, para aquele que foi, tem saudades de si próprio e procura compreender os fatos que não se despegaram jamais de sua mente. Porque a memória é um arquivo vivo, mas é um arquivo que não guarda tudo, que só guarda o que pode e o que quer. É um arquivo onde tão importante quanto aquilo que se lembra é aquilo que se esquece. O autor, inescapavelmente, seleciona, distorce e interpreta os fatos que quer narrar. Por mais que deseje ser fiel, nunca produzirá um relato idêntico à experiência.”

A principal fonte são as reminiscências, o que permite total liberdade criativa. Mesmo sendo uma versão romanceada da própria história, com a fusão de realidade e de ficção, a reinvenção de paisagens antigas, de lugares que não existem mais e de pessoas que já se foram, o autor não pode ignorar a verossimilhança e alavancar a níveis inacreditáveis os próprios feitos, sob risco de ser questionado e perder a credibilidade. Os leitores, sobretudo com a facilidade das ferramentas digitais disponibilizadas no século 21, são fiscais de eventuais excessos.

Um caso famoso aconteceu nos Estados Unidos. “A million Little Pieces”, de James Frey, foi originalmente vendida como memórias. Depois de uma série de questionamentos sobre a fabricação de experiências com uso de drogas e da ficha criminal, a obra passou a ser vendida como um romance semi-ficcional. Na época, o autor respondeu que “nunca negou que alterou pequenos detalhes”.

No livro de memórias, o leitor vai ter acesso a conteúdo construído nem sempre com a leitura rigorosa dos eventos. “O real e o imaginado se confundem, tornando a escrita um híbrido entre ficção, autobiografia e escrita de si. O leitor entra no mundo da memória do autor, onde fatos históricos se transformam no real maravilhoso”, complementa Kaline Cavalheiro da Silva.

 

LIVROS DE MEMÓRIAS

 

“Minha razão de viver – memórias de um repórter”

Samuel Wainer

 

“Memórias de alegria”

Joel Silveira

 

“Paula”

Isabel Allende

 

“Prólogo, ato e epílogo”

Fernanda Montenegro

 

“Um intelectual na política – memórias”

Fernando Henrique Cardoso 

 

“Memórias de um historiador de domingo”

Boris Fausto

 

“Jardim de Inverno”

Zélia Gattai

 

 

BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA

 

No Brasil, uma polêmica gravita em torno das biografias não autorizadas, aquelas que são produzidas sem a anuência do biografado ou do detentor do direito autoral sobre outra pessoa. Essa modalidade, que faz sucesso, é fato, tem duas leituras. De um lado, há quem defenda que esse tipo de material tem relevância histórica, social e cultural – e cativa o leitor com grandes histórias. Do outro, há o argumento de que as obras geram lucros para editoras e autores, sem qualquer pagamento ao biografado.

Tal obra não é submetida à revisão e à aprovação prévia da principal parte interessada antes da publicação, o que garante maior liberdade de expressão ao autor para abordar qualquer assunto, desde que seja importante na construção do perfil.

De acordo com a advogada Dolly Outeiral, no artigo “O dilema das biografias não autorizadas”, publicado no Jornal do Comércio, em 2020, o conflito nessa seara ocorre por conta dos direitos à honra, à imagem, à privacidade e aqueles relativos à liberdade de expressão. “Sedimentou-se o entendimento de que a liberdade de expressão e informação se sobrepõem ao direito de personalidade, resguardando-se ao biografado a adoção das medidas reparatórias necessárias em caso de violação à sua honra e sua imagem.”

Em 2007, Paulo César de Araújo publicou a biografia “Roberto Carlos em detalhes”. O cantor ingressou com um processo e a justiça lhe deu razão, mandando recolher milhares de exemplares das livrarias. Depois da batalha judicial, o caso terminou em acordo. Mais tarde, Roberto Carlos participou um movimento nacional que apoiou o entendimento de alguns juízes de que era necessária uma autorização prévia para a biografia ser produzida. Em 2015, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os autores não precisam de autorização para elaborador um livro sobre uma pessoa de interesse social, em nome da liberdade de expressão, do livre pensamento e da atividade intelectual. O biografado que se sentir lesado poderá buscar reparação judicial. Tem o direito assegurado de indenização por dano moral, material e resposta, em caso de ofensa.

 

OUTRAS FORMAS DE BIOGRAFIA

 

Com objetivo de atingir públicos cada vez maiores e também apresentar “novidades” sobre determinada personalidade exaustivamente biografada, as editoras investem na realização de projetos biográficos que fogem um pouco do modelo tradicional. A essência é igual, que é contar a vida pessoal e profissional de uma pessoa reconhecida na sociedade. O que muda é o uso de formatos diferenciados, o que traz frescor a uma história de quem tem farta informação disponível.

Há biografias que apresentam a personagem em quadrinhos, como o “Diário de Anne Frank”, com grande sucesso comercial e de público. Também se destacam as populares fotobiografias, com utilização majoritária de fotos e pouco texto. Músico é um tipo de artista que, ao alcançar uma produção robusta, a trajetória se conta também a partir das letras. Um escultor pode ter a história apresentada em uma coletânea com imagens de sua obra, em ordem cronológica, com dados técnicos e temporais. O fundamental é construir uma narrativa que agregue conteúdo e deixe um registro que contribua para o entendimento da obra.

Outra modalidade biográfica, que é antiga e bem aceita entre o público: as que são escritas para os públicos infantil e juvenil. O texto é mais direto, bem menor do que uma biografia comum e pode ser acompanhado de ilustrações, infográficos e fotografias. A biografia é um campo que permite experimentações de acordo com o perfil do biografado.

 

UMA OBRA INCOMPLETA, MAS FUNDAMENTAL

 

Mesmo com grandioso empenho, pesquisa que avance por décadas e amplo conhecimento sobre a causa, o biógrafo tem ciência de que seu livro vai atingir, no máximo, um importante recorte sobre a vida do biografado, pois é impossível reconstituir, de forma total e indispensável, a complexidade humana em um volume ou série. A biografia nunca será concluída.

“Não importa o número de fontes que consiga exumar. Diante dele, abrem-se pistas novas, onde corre o risco de se enredar a cada passo”, afirma o historiador e sociólogo francês François Dosse. A constatação, no entanto, não retira – em nada – a relevância e o papel social que a biografia tem entre os leitores.

A pesquisa buscou entender melhor, a partir da análise bibliográfica, as diferenças e as similares dos textos biográficos mais comuns no mercado editorial brasileiro, a biografia, a autobiografia e o livro da memória. Tem como objetivo oferecer informações e subsídios técnicos para que o público entenda as características únicas dessas obras, que são focadas em apresentar, de maneira aprofundada e muitas vezes romanceada, a história de uma pessoa, aumentar o poder de análise do gênero e desenvolver uma visão mais crítica sobre o que está lendo.

Muito além da figura que se tornou pública, esse tipo de publicação mostra, entre outros detalhes, como o biografado pensa e age, as escolhas que fez em momentos cruciais, os erros ao longo da jornada, como construiu a carreira e qual legado deixou, com a divulgação dos métodos utilizados para levar adiante seu projeto.

“Biografias fascinam. Raros são os que se quedam indiferentes diante das vicissitudes de uma vida. Poucos conseguem manter-se alheios a embates, fracassos e vitórias vividos nas existências alheias”, afirma o professor Jonaedson Carino no artigo “A biografia e sua instrumentalidade educativa”, publicado em 1999 na Revista Educação & Sociedade, ano XX.

Segundo Carino, “não se biografa em vão. Biografa-se com finalidades precisas: exaltar, criticar, demolir, descobrir, renegar, apologizar, reabilitar, santificar, dessacralizar. Tais finalidades e intenções fazem com que retratar vidas, experiências singulares, trajetórias individuais transforme-se, intencionalmente ou não, numa pedagogia do exemplo. A força educativa de um relato biográfico é inegável”.

A biografia é fundamental para a formação da identidade do país.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

LIVROS

 

– ARAÚJO, Paulo César de. “Roberto Carlos em detalhes”.

São Paulo: Planeta, 2006.

 

– BATISTA e MEDEIROS, Márcia e Anna. “Silvio Santos, a biografia”.

São Paulo: Universo dos Livros, 2017.

 

– CARRANCA, Adriana. “Malala, a menina que queria ir para a escola”.

São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2015.

 

– DOSSE, François. “O desafio biográfico – escrever uma vida”.

São Paulo: Edusp, 2009.

 

– JACOBSON e COLÓN, Sid e Ernie. “Anne Frank – a biografia ilustrada”.

São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

 

– JOCENIR. “Diário de um detento”.

São Paulo: Labortexto Editorial, 2001.

 

– LEE, Rita. “Uma autobiografia”.

São Paulo: Editora Globo, 2016.

 

– MEDEIROS, Jotabê. “Belchior – Apenas um rapaz latino-americano”.

São Paulo: Todavia, 2017.

 

– MATOGROSSO, Ney. “Vira-lata de raça: memórias”.

São Paulo: Tordesilhas, 2018.

 

– MONTENEGRO, Fernanda. “Prólogo, ato e epílogo”.

São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

 

– STENGEL, Richard. “Os caminhos de Mandela – Lições de vida, amor e coragem”

São Paulo: Editora Globo, 2010.

 

ARTIGOS

 

– SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Biografia como gênero e problema”.

Publicado na Revista História Social, número 24, primeiro semestre de 2013.

 

– SILVA, Kaline Cavalheiro. “Autobiografia x escrita de si = autoescrita”.

Publicado na Revista Letras Raras, 2018.

Disponível em: http://ch.revistas.ufcg.edu.br/index.php/RLR/article/view/985

 

SILVA, Alberto da Costa. “Autobiografias e livros de memória”. Revista E.

Publicado na Revista E, em 2019. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/online/artigo/13860_AUTOBIOGRAFIAS+E+LIVROS+DE+MEMORIA

 

– SCHMIDT, Benito Bisso. “Por que escrevemos biografias?”.

Publicado no portal In: Café História – história feita com cliques, 2019.

Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/por-que-escrevemos-biografias/

 

– OUTEIRA, Dolly. “O dilema das biografias não autorizadas”.

Publicado no Jornal do Comércio, 2020.

 

– CARINO, Jonaedson. “A biografia e sua instrumentalidade educativa”.

Publicado na Revista Educação & Sociedade, em 2009.